O STF saiu do armário!

Enfim, o reconhecimento da União Estável Homoafetiva

Sally Rejane Satler
Advogada

Uma sociedade decente é uma sociedade que não humilha seus integrantes. O tribunal lhes restitui o respeito que merecem, reconhece seus direitos, restaura sua dignidade, afirma sua identidade e restaura sua liberdade. - Ellen Gracie, Ministra do STF, ao pronunciar o seu voto favorável à união estável entre pessoas do mesmo sexo)

Que não se separe por um parágrafo, o que a vida uniu pelo afeto. Ayres Britto, Ministro do STF, na leitura de seu voto, fazendo menção à uma leitura literal e simplista do dispositivo constitucional que trata da união estável (art. 26, parágrafo 3º).
  
Há muito que os movimentos LGBT e de Direitos Humanos lutam pelo reconhecimento da união civil entre pessoas do mesmo sexo. No Congresso Nacional, entre pautas e engavetamentos, após as eleições de 2010, a possibilidade de por em votação em pauta o projeto novamente reavivou as esperanças na conquista deste direito e legitimação da igualdade entre todos proclamada na Constituição Federal de 1988.

Enquanto se esperava a lenta movimentação do Congresso, o Supremo Tribunal Federal – STF – surpreendeu a todos neste mês de maio, quando, por unanimidade, reconheceu a União Estável entre pessoas do mesmo sexo. Uma conquista importantíssima e uma demonstração de maturidade e compreensão jurídica por parte dos nossos Ministros. Afinal, o último censo revelou a existência de aproximadamente 60 mil famílias constituídas por pessoas do mesmo sexo no Brasil, e independentemente de números, não é possível condená-las à invisibilidade.

A decisão surpreendeu também a FPE – Frente Parlamentar Evangélica – composta por setenta e seis deputados federais e três senadores, que há muito se articula para impedir a união civil de pessoas do mesmo sexo. Aliás, estranho não se questionar a existência de uma Frente Parlamentar em defesa de crenças religiosas em um país constitucionalmente laico, ou seja, deputados e senadores movidos por interesses e crenças pessoais, e não pela garantia da igualdade de direitos a todos os cidadãos. A mais recente articulação desta Frente culminou na suspensão da circulação do kit anti-homofobia nas escolas, em troca de favores políticos para o Governo Dilma. E neste momento, a FPE vem anunciando estratégias com o objetivo desviar o foco das discussões em torno da aprovação da união civil homossexual, ainda que inócuas do ponto de vista jurídico.

Uma das estratégias é apresentar um projeto de lei que garanta a toda igreja o direito de não ser obrigada a realizar casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Obviamente, a Constituição já garante a ampla liberdade de crença, e seria impossível uma imposição estatal às igrejas de celebrar casamentos religiosos homossexuais. Outra tentativa, capitaneada pelo presidente da FPE (deputado João Campos – PSDB-GO), constitui na elaboração e aprovação de um decreto legislativo que pretende reafirmar a competência do Congresso para tratar da matéria, numa tentativa de sustar os efeitos da decisão do STF. Também inócua, porque o STF não criou uma nova lei, apenas interpretou-a conforme a Constituição, que prima pela liberdade, igualdade de direitos e dignidade humana. Assim, resta perguntar se realmente os deputados da FPE não sabem o que fazem ao buscar essas ‘soluções’ legislativas tão simplórias, ou se apenas querem confundir a opinião pública, ou ainda pior, criar um factóide para a mídia, numa luta contra os direitos civis para homossexuais.

Para fazer valer seus direitos, os casais homossexuais ainda terão que buscar os tribunais em muitas situações, mas agora respaldados pela decisão do STF. Ou seja, antes do reconhecimento da união homossexual, direitos como herança e divisão de bens poderiam ser negados no Judiciário, enquanto que agora, da mesma forma que uma família heterossexual, tais direitos podem ser buscados com mais segurança perante à Justiça, amparados na decisão da Corte Suprema.

É importante enfatizar que essa decisão não preenche totalmente a lacuna deixada pelo Legislativo, que deverá regulamentar as relações decorrentes do reconhecimento da união. Em nível local, também é necessário e urgente mobilizar o Poder Executivo e Legislativo locais para regulamentar, por exemplo, o direito de pensão dos servidores homossexuais junto aos planos de previdência municipais (como por exemplo, o ISSBLU - Instituto de Seguridade Social dos Servidores Públicos Municipais de Blumenau), e também em nível estadual (como o IPESC/IPREV).

Por isso, entendo que essa conquista constitui somente uma etapa de um longo processo de luta. Ainda há muito a ser conquistado, e muitos são os interesses e preconceitos a serem combatidos.

Mas afinal, o que efetivamente muda a partir dessa decisão que reconheceu a União Estável entre casais do mesmo sexo? A partir desse momento, os casais homossexuais passaram a ser considerados uma entidade familiar, com direitos de herança, comunhão de bens, pensão alimentícia, pensão por morte, plano de saúde, entre tantos outros. Essa decisão tem efeito vinculante, ou seja, os outros tribunais do país deverão segui-la em julgamentos que tratem do assunto. Assim, as regras serão semelhantes nos casos de União Estável envolvendo tanto casais heterossexuais, como casais homossexuais. 


No momento, mais importante que celebrar essa conquista, é fazer valer esse direito. Por isso, conclamo a todos os casais homossexuais que compareçam a um cartório e firmem a Declaração de União Estável, como um ato de legitimação perante o Estado, à sociedade e seus familiares; pois, nesse caso, é um ato de rebeldia ante a fragilidade legal dessa união, uma teimosia, não uma convenção; fortalece a luta e o debate em favor do reconhecimento da união civil homossexual e de seus direitos mais básicos. É o tempo da travessia, e se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos, citando Fernando Pessoa, tal como o Ministro Luiz Fux fez em seu voto no STF.